sexta-feira, 10 de abril de 2009

O brinquedo que brincou de realidade



Manhã de março de um novo século. Século das novas luzes. Exatidão, motivação. Denúncia e persuasão de seres telepáticos. Aqueles “cegos inexatos” acordaram-me com a incansável e incessante chuva tempestuosa. Torrencial a mais parecer lançamento penal divino. Praga. Castigo. As frias gotículas d’água, semelhantes a granizo – se fossem reais. Mas são águas passageiras. Atormentadoras do meu psicológico altamente mal-administrado – adentraram invasoramente a janela. O computador sentia, desde o mais tenro e impreciso instante, o seu gemer. Dor, talvez. Gélida sensação, certeza. Sobre a escrivaninha, uma redação a ser feita. E nenhuma idéia de introdução. E deitado sobre o leito, local uno de afeto e compreensão verossímeis, encontrava-me em intensa viagem introspectiva. Uma pedra com espinhos cravados era vista por meus olhos.

Ao levantar, meu quarto disse-me de sua necessidade de limpeza. E num singelo ato de socorro a uma pessoa enferma, ponho-me prontamente a atender seu pedido. Não penses que fiz somente por seu o meu casto e confortável quarto, senão enganas a ti mesmo. O armário, abarrotado de lembranças, num súbito desabafo, lança o peso da memória não suportado. Como cuspe. Cerro-me os olhos e dou-me em mãos atadas, fortemente por elas mesmas seguradas. Sinto bater duas vezes o coração. Lágrimas rolam a face convexa e ofuscam-me a visão. Sobre o chão de taco descuidado, desliza sozinho um carrinho Ferrari, fiel companheiro natalino em 1998. Três sobreviventes rodas, apenas.

[...]

Havia chegado o dia. Malas prontas a serem guardadas no bagageiro. Será que agüentará o peso, ao contrário do armário? Medo. Sim ou não, pouco me importo. As malas já estão dentro.

O irmão chegava com a última mochila, pois lá ficaria. Passou no vestibular. Compartilhar-te-ei este momento também noutra narrativa. Brevemente.

Finalmente trouxera orgulho aos meus pais. Era alvo de conversas entre os amigos quando em festa ou reuniões particulares. O assunto: meu irmão. O exemplo: meu irmão. Até adotei para mim tal pronome possessivo, pois me dera orgulho também. Ele estava de saída para uma cidade paulista próxima em narração. Conseguira o terceiro lugar (medalha de bronze!) em sua real vocação: Engenharia-de-alguma-coisa.

Estava tudo pronto para a partida. Titia veio se despedir ao portão, em meio às lágrimas interiores de seu peito. Era sempre assim... Mamãe estava correndo de um lado para o outro; Papai retirava o carro da garagem; Os irmãos faziam algazarra. Por enquanto tenho fôlego.

A viagem foi tranqüila, subtraindo o pneu furado e o engarrafamento na Pinheiros. A praia era tão grande. Guarujá era perfeito. A espera pela festa natalina enfeitava a cidade e a orla em coloridos reluzentes. Águas-de-coco, sol mar, família. Que mais poderia desejar? Contudo, sentia-me invisível. Como se não fosse nada daquilo real. Não fechei um ombro em direção ao outro por não ter nada, somente horizonte, ao meu redor. E acredita, o horizonte era nada naquele instante.

Tudo do meu mundo exterior corria plausivelmente bem. Somente desse mundo. Eu, feliz com minha família, enfim reunida. Por pouco tempo. Ganhei o presente de Natal que tanto queria. Um carrinho Ferrari. O clima era de paz e harmonia. Entretanto, nunca imaginei que o 25 de dezembro significaria potencialmente a morte em decadência, em leve decadência... Desespero.

O retorno ao lar foi turbulento. Brigas entre dois irmãos restantes, inclua-se meu nome, e discussão entre papai e mamãe. Esta não parara de chorar e de se lamentar por ter deixado sua mais velha pupila em São Paulo. Aterrorizantemente reclamava e, ao mesmo tempo, indagava-se por que a criação era o para o mundo. Mamãe não sabia ao certo aonde ir para sentir-se melhor. Eu que não sabia o motivo de sua procura exterior, quando era claro que isto não lhe bastaria. O carrinho vermelho com as rodas gastas de tanto ser brincado vinha ao meu colo, observando os detalhes de meu desespero. Sei o porquê, e retorno...

[...]

O Ferrari parou de deslizar, encostando-se no canto da parede. Afinal, o espaço é delimitado. Ao longe, ouvia os sons da televisão, a transmitir Terra Nostra em Vale a pena ver de novo. Vovó se prostrava ao lado de mamãe. Pego o carrinho e o ponho sobre as pernas para um momento epifânico. E aqui se concretiza toda a tensão desta narração. Presta atenção, se até aqui chegaste.

-“Puxa companheiro! Quanto tempo de latência viveu nesse armário em puro estado vegetativo! Você que é sem nome, mas com sangue. Você que me aturou mais dias, anos, que este leitor, necessita saber da vida. Dos feitos. Dos fatos. De(s)feitos”.

E contei-lhe, exceto aquilo que o choraria, definitivamente. Não obstante, não lhe poderia esconder a realidade: Papai sofreu “derrame”, não retira mais o carro da garagem; os irmãos vagam mundo afora, não tendo mais algazarra; e mamãe está de cama, ao lado de vovó, com doença incurável. Não corre mais de um lado para o outro.

2 comentários:

  1. Te disse que comentaria os textos "dignos" de serem comentados. Esse certamente o é. Mas não sei o que dizer.

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  2. Digno é pouco. Mas também não sei o que dizer.

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