sexta-feira, 3 de abril de 2009
Blum
Tantas horas em casa, fechado no meu quarto-mundo, é estressante. Às vezes saio e corro passos apressados até a cozinha, abro a geladeira pra pensar um pouco. Água, suco, algum doce? Não, não quero nada. Foi só pra pensar mesmo. E penso na energia que dispus ao percorrer o trajeto. O ser humano não é nada econômico frente às bactérias. O que Blum faz neste momento? E por que eu estou pensando nela? Será o chá-vindo-diretamente-da-Inglaterra? Ou seria aquele papo sobre cristãos versus ateus? Lembrei-me muito bem de Blum.
Minha irmã chegou do serviço tão tarde e me pediu para encher o tanque de sua moto. Por ruas desertas, já escuras, dirijo à procura de um posto de gasolina. Já é meia-noite na cidade interior do interior do Brasil. Só há um posto aberto àquela hora. O mais longe para tão pouco combustível. Olho pro céu e ele me penaliza com uma gota de chuva no olho esquerdo. Dói.
Depois de tantos pedidos e promessas que nunca cumprirei, chego a tempo ao posto. Estaciono a moto com uma destreza ainda em treinamento. O frentista percebe minha falta de intimidade com aquelas duas rodas. E ri por dentro, tenho certeza. Enquanto ele põe os cinco únicos reais que tenho no bolso, que são da minha irmã, olho para a bomba de gasolina. Faço uma rápida e simples conta matemática na cabeça sobre litro e quilometragem. Algumas sinapses estabelecem circuitos divergentes e remetem à memória do cursinho. Aqueles problemas de álcool ou gasolina, qual o mais vantajoso. Sinapse burra, inoportuna. A moto é à gasolina. A sinapse é bloqueada.
Do outro lado da bomba, outra moto pára. O capacete rosa em corpo perfeitamente magro é tirado da cabeça. Tão linda. O olhar se volta para a rodinha dos litros correndo. Tão linda. E volta. Tão linda. E volta. Ela percebeu meu desejo de encará-la. E fez tipo. Fugiu o rosto por detrás da bomba. Inclinei o pescoço. Ela se escondeu mais ainda. Comecei a jogar também. Escondi-me. Ela olhou. Escondi-me mais ainda. Ela esticou o pescoço. Olhei-a no fundo dos olhos meio puxados. Ela sorriu discretamente, com um piscar de olhos mais demorado que o de costume. Ela está a fim.
Eu ouvi quando a voz também pediu cinco reais de gasolina, mas não compreendi o motivo de ter sido mais rápido atendê-la. O frentista ainda estava em meus quatro reais e o dela já completo. De certo ele ainda estava rindo de mim. Da minha inabilidade com motos. Ela fala um “Obrigada” ao frentista mais meigo que ouvi. Dá uma última olhada em busca dos meus olhos seguida por um sorriso, e sai. Devagar.
Uma ânsia de ser grosso com o funcionário surgiu em mim. Mas, enfim, completaram os tantos reais. Paguei-o e acelerei a moto em direção ao caminho seguido pelo capacete rosa. Ao longe avistava sua seta à direita e depois à esquerda. Gravei todo um caminho até que ela sumiu. Por que será que queremos perseguir somente aqueles que fogem?
Embora pra casa. Nada de interessante naquela noite. Naquela meia-noite. Não sei, mas a palavra “embora”, às vezes, é tão inoportuna. “Embora” surgiu de uma junção aglutinada de três palavras com perda de fonema: “em+boa+hora”. Que boa hora era aquela em que eu queria conhecer aquela menina e ela fugiu de mim.
Numa rua do interior, caminho de volta para casa, resolvo passar pela contramão para poupar tempo e gasolina. Como se houvesse pouco tempo. Como se houvesse pouco combustível. Um farol. Pensei em polícia. Um farol. Descartei ser a polícia. Era uma moto. Era um capacete rosa.
-Oi, menino do posto.
-Oi, menina do capacete rosa.
-Qual o seu nome?
Respondi perguntando o seu.
-Anota meu telefone.
-Qual o seu nome? Você não disse.
-Você tem meu telefone. Me liga. Qualquer dia você fica sabendo.
Adoro pessoas ocultas, misteriosas. E desejei que este conto terminasse aqui mesmo. Qualquer outra palavra que ela dissesse, naquele instante, estragaria todo o clímax da narrativa. É sempre bom adiar o prazer.
Sem dizer nada, ela acelerou, para satisfazer meu desejo. De volta ao quarto-mundo tomei, em lembrança, o chá-vindo-diretamente-da-Inglaterra.
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Bastante visual esse texto. É impossível não imaginar toda a cena, passo a passo.
ResponderExcluirTão bom pensar em frente à geladeira. É uma pena que a conta de luz aumente... rss
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