sábado, 10 de abril de 2010

A visita da cor



Outrora fui criticado por escrever textos preto-e-branco. Uma tal tecnologia de mil, milhões, ou até mais, para o grand finale ser uma guerra. Não estou falando de Oscar. Só estou dizendo que a arte imita a vida.
Parecia um trecho de Thomas Keneally. Algumas coisas em preto. Outras em branco. A cidade com seus muros, com seus passos, com suas conversas, com suas pressas. Em pernas. Para o alto, um balão. Carros... naquela cena, apenas os pretos e brancos. Era instigante como a vida resolvera se descolorir. A faixa na rua listrava pegadas rústicas de um homem de bigode com sua filha. Ela ia arrastada, deixando sua cabeça um pouco mais atrás, hipotônica. Não estava cabisbaixa. Seus olhos olhavam pra cima e pra baixo. Uma imagem terrível foi ver o que a menina não enxergava fixamente. Oscilava. Oscilava. Era tudo tão inconstante.
E naquele cenário pichado, um balão voava por entre os carros. Vermelho ia e vinha. Subia e descia. E a menina ia arrastada por braços fortes. Ela se martirizava não porque seu balão havia se soltado de sua mão e isso significava o fim, mas porque ela não vira o fim. Ele subia, ele descia. Vermelho ia, vermelho vinha. Era o último verbo que ela queria presenciar na ação de sua vida. O verbo “vir”. A esperança vermelha em seus braços novamente. A alegria de volta. Porém ela só tinha lágrimas, salgadas, que sozinhas secariam e deixariam um caminho enrugado no seu rosto, lembrando-lhe sempre a dar valor na felicidade, em teoria.
Era a minha vez de atravessar a rua, ainda fitando a última lágrima naquele rosto. Por entre as barracas de camelôs eu procurava meu carimbaço. Era engraçado um laser. Instigar pessoas para uma luz desconhecida. Fazer-se notado, sobretudo à noite. E lembrei os dezesseis natais que, quando criança-adolescente, sabia o presente que ganharia. E, na vigésima quarta noite do mês de dezembro, rasgava com voracidade o embrulho. E brincava dias, sempre. Era a alegria e também a surpresa. Sim, sobretudo surpresa. Paradoxalmente, surpresa. A consciência sempre me dizia: você é feliz, em teoria.
Mas aquela menina não está feliz, está angustiada. Seu balão vaga por aí. Nenhum carro sequer conseguiu estourá-lo. Ele sobe e desce ainda. Vai e volta ainda. E a menina sabe disso, mas seu pai, seu pai não sabe ou prefere não saber. A angústia para os adultos não passa de um ato animal de engolir a tristeza a fim de vomitá-la como normalidade.
E resolvi colocar a felicidade em prática. Sair na rua, à noite, carimbando as pessoas com meu laser. Cenário preto-e-branco novamente. Vida preto-e-branco. Vida barata. Vida preenchida por descolores. Somente o laser pra me enxergar o vermelho. Só estou falando que a vida imita a arte. Nada mais. E nada menos também.