sexta-feira, 10 de abril de 2009
O brinquedo que brincou de realidade
Manhã de março de um novo século. Século das novas luzes. Exatidão, motivação. Denúncia e persuasão de seres telepáticos. Aqueles “cegos inexatos” acordaram-me com a incansável e incessante chuva tempestuosa. Torrencial a mais parecer lançamento penal divino. Praga. Castigo. As frias gotículas d’água, semelhantes a granizo – se fossem reais. Mas são águas passageiras. Atormentadoras do meu psicológico altamente mal-administrado – adentraram invasoramente a janela. O computador sentia, desde o mais tenro e impreciso instante, o seu gemer. Dor, talvez. Gélida sensação, certeza. Sobre a escrivaninha, uma redação a ser feita. E nenhuma idéia de introdução. E deitado sobre o leito, local uno de afeto e compreensão verossímeis, encontrava-me em intensa viagem introspectiva. Uma pedra com espinhos cravados era vista por meus olhos.
Ao levantar, meu quarto disse-me de sua necessidade de limpeza. E num singelo ato de socorro a uma pessoa enferma, ponho-me prontamente a atender seu pedido. Não penses que fiz somente por seu o meu casto e confortável quarto, senão enganas a ti mesmo. O armário, abarrotado de lembranças, num súbito desabafo, lança o peso da memória não suportado. Como cuspe. Cerro-me os olhos e dou-me em mãos atadas, fortemente por elas mesmas seguradas. Sinto bater duas vezes o coração. Lágrimas rolam a face convexa e ofuscam-me a visão. Sobre o chão de taco descuidado, desliza sozinho um carrinho Ferrari, fiel companheiro natalino em 1998. Três sobreviventes rodas, apenas.
[...]
Havia chegado o dia. Malas prontas a serem guardadas no bagageiro. Será que agüentará o peso, ao contrário do armário? Medo. Sim ou não, pouco me importo. As malas já estão dentro.
O irmão chegava com a última mochila, pois lá ficaria. Passou no vestibular. Compartilhar-te-ei este momento também noutra narrativa. Brevemente.
Finalmente trouxera orgulho aos meus pais. Era alvo de conversas entre os amigos quando em festa ou reuniões particulares. O assunto: meu irmão. O exemplo: meu irmão. Até adotei para mim tal pronome possessivo, pois me dera orgulho também. Ele estava de saída para uma cidade paulista próxima em narração. Conseguira o terceiro lugar (medalha de bronze!) em sua real vocação: Engenharia-de-alguma-coisa.
Estava tudo pronto para a partida. Titia veio se despedir ao portão, em meio às lágrimas interiores de seu peito. Era sempre assim... Mamãe estava correndo de um lado para o outro; Papai retirava o carro da garagem; Os irmãos faziam algazarra. Por enquanto tenho fôlego.
A viagem foi tranqüila, subtraindo o pneu furado e o engarrafamento na Pinheiros. A praia era tão grande. Guarujá era perfeito. A espera pela festa natalina enfeitava a cidade e a orla em coloridos reluzentes. Águas-de-coco, sol mar, família. Que mais poderia desejar? Contudo, sentia-me invisível. Como se não fosse nada daquilo real. Não fechei um ombro em direção ao outro por não ter nada, somente horizonte, ao meu redor. E acredita, o horizonte era nada naquele instante.
Tudo do meu mundo exterior corria plausivelmente bem. Somente desse mundo. Eu, feliz com minha família, enfim reunida. Por pouco tempo. Ganhei o presente de Natal que tanto queria. Um carrinho Ferrari. O clima era de paz e harmonia. Entretanto, nunca imaginei que o 25 de dezembro significaria potencialmente a morte em decadência, em leve decadência... Desespero.
O retorno ao lar foi turbulento. Brigas entre dois irmãos restantes, inclua-se meu nome, e discussão entre papai e mamãe. Esta não parara de chorar e de se lamentar por ter deixado sua mais velha pupila em São Paulo. Aterrorizantemente reclamava e, ao mesmo tempo, indagava-se por que a criação era o para o mundo. Mamãe não sabia ao certo aonde ir para sentir-se melhor. Eu que não sabia o motivo de sua procura exterior, quando era claro que isto não lhe bastaria. O carrinho vermelho com as rodas gastas de tanto ser brincado vinha ao meu colo, observando os detalhes de meu desespero. Sei o porquê, e retorno...
[...]
O Ferrari parou de deslizar, encostando-se no canto da parede. Afinal, o espaço é delimitado. Ao longe, ouvia os sons da televisão, a transmitir Terra Nostra em Vale a pena ver de novo. Vovó se prostrava ao lado de mamãe. Pego o carrinho e o ponho sobre as pernas para um momento epifânico. E aqui se concretiza toda a tensão desta narração. Presta atenção, se até aqui chegaste.
-“Puxa companheiro! Quanto tempo de latência viveu nesse armário em puro estado vegetativo! Você que é sem nome, mas com sangue. Você que me aturou mais dias, anos, que este leitor, necessita saber da vida. Dos feitos. Dos fatos. De(s)feitos”.
E contei-lhe, exceto aquilo que o choraria, definitivamente. Não obstante, não lhe poderia esconder a realidade: Papai sofreu “derrame”, não retira mais o carro da garagem; os irmãos vagam mundo afora, não tendo mais algazarra; e mamãe está de cama, ao lado de vovó, com doença incurável. Não corre mais de um lado para o outro.
Mel
Quando jovem, acreditei que iria me ligar a várias pessoas. Mais tarde na vida, percebi que só aconteceria algumas vezes. E às vezes.
Ela era tão doce quanto o mel. Lembro a primeira vez que conversamos. Assunto qualquer, talvez apenas risos nas primeiras palavras. Um amigo de cursinho, que entendia de acupuntura, nos apresentou. Nada formal, pois eu já a conhecia. Estudávamos juntos há seis meses, e sequer trocávamos “Bom dia”. Algo tinha que mudar.
Todos os dias eu a observava, ali, no fundinho da sala. Sempre com uma lapiseira na mão e folhas na sua vista. Provas, questões. Desistira de ser veterinária para ser médica. Mas não foi naquele ano ainda. Mais seis meses seguiram e consagramos o melhor Extensivo do colégio. Mesmo sem a minha aprovação. Mesmo sem a dela. Seguiu uma tal específica que fizemos juntos. E fizemos novos amigos. Mas, sem dúvida, o curso foi específico para a consolidação da minha admiração por ela.
Futuro incerto, dependente de bolsa de estudo. Vesti uma máscara que esconde a vergonha e ganhei mais seis meses com ela. Na mesma turma. Nesse momento já éramos amigos. Eu consegui sair do meu mundinho, e o mesmo fez ela. Semi 09 agora, para os últimos seis meses juntos.
Todos invejavam nossa amizade. A princípio nada a ver: ela, no tão-tão-fundo; eu sempre tão-à-frente. Nos intervalos, lanchávamos barrinhas de cereais juntos. E ríamos de seus sonhos tão peculiares. Sempre únicos. Dignos de uma pessoa com uma inteligência fora do comum. Dizem que inteligentes são aqueles que conseguem estabelecer raciocínios mais ilógicos possíveis. E isso ela fazia sempre, sem titubear.
Havia um momento da semana em que sentávamos lado a lado. As aulas de inglês eram as mais divertidas possíveis. Às vezes resolvíamos outros exercícios, às vezes conversávamos sobre o dia-a-dia. Mais o segundo às vezes do que o primeiro. E não sentia nenhum pesar em falar da nossa vida, ou da dos outros. Era o nosso momento de fofoca. E só tínhamos esse.
Um dia ela estava triste. Foi seu único dia negro que eu lembro. Pensara em desistir de seu sonho e voltar à capital federal. Voltar para longe de mim. Comecei a dar conselhos para melhorar seu estado de espírito. E também para aliviar minha sensação de futuro abandono. Não adiantou. Ela passou no vestibular. Ela se foi. Futura médica. E só sei que pela primeira vez não me senti abandonado. Senti que cedo eu que iria embora. E um conforto intenso tomou conta de mim, naquele momento.
Hoje estou ao sul porque cedo fui embora. Ela ali perto de mim, não tão longe. Lado e outro lado. Mas só nos vemos nas férias. Contudo, a liberdade daqueles dois mundos que, um dia, se fundiram é imensa que não há mudança de hábito. De sentimento. Cada um nutre aquilo que sente pelo outro para sempre e mais um dia. Sinto falta. Ela também sente. E assim nos entendemos e endereçamos a nossa vista a uma caixa postal de esperança. Enquanto longe, o MSN torna nossas noites mais alegres. Nossos dias mais claros. É tão bom conversar com ela. É um faz-me bem repentino.
Enquanto houver você do outro lado, aqui do outro eu consigo me orientar.
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Blum
Tantas horas em casa, fechado no meu quarto-mundo, é estressante. Às vezes saio e corro passos apressados até a cozinha, abro a geladeira pra pensar um pouco. Água, suco, algum doce? Não, não quero nada. Foi só pra pensar mesmo. E penso na energia que dispus ao percorrer o trajeto. O ser humano não é nada econômico frente às bactérias. O que Blum faz neste momento? E por que eu estou pensando nela? Será o chá-vindo-diretamente-da-Inglaterra? Ou seria aquele papo sobre cristãos versus ateus? Lembrei-me muito bem de Blum.
Minha irmã chegou do serviço tão tarde e me pediu para encher o tanque de sua moto. Por ruas desertas, já escuras, dirijo à procura de um posto de gasolina. Já é meia-noite na cidade interior do interior do Brasil. Só há um posto aberto àquela hora. O mais longe para tão pouco combustível. Olho pro céu e ele me penaliza com uma gota de chuva no olho esquerdo. Dói.
Depois de tantos pedidos e promessas que nunca cumprirei, chego a tempo ao posto. Estaciono a moto com uma destreza ainda em treinamento. O frentista percebe minha falta de intimidade com aquelas duas rodas. E ri por dentro, tenho certeza. Enquanto ele põe os cinco únicos reais que tenho no bolso, que são da minha irmã, olho para a bomba de gasolina. Faço uma rápida e simples conta matemática na cabeça sobre litro e quilometragem. Algumas sinapses estabelecem circuitos divergentes e remetem à memória do cursinho. Aqueles problemas de álcool ou gasolina, qual o mais vantajoso. Sinapse burra, inoportuna. A moto é à gasolina. A sinapse é bloqueada.
Do outro lado da bomba, outra moto pára. O capacete rosa em corpo perfeitamente magro é tirado da cabeça. Tão linda. O olhar se volta para a rodinha dos litros correndo. Tão linda. E volta. Tão linda. E volta. Ela percebeu meu desejo de encará-la. E fez tipo. Fugiu o rosto por detrás da bomba. Inclinei o pescoço. Ela se escondeu mais ainda. Comecei a jogar também. Escondi-me. Ela olhou. Escondi-me mais ainda. Ela esticou o pescoço. Olhei-a no fundo dos olhos meio puxados. Ela sorriu discretamente, com um piscar de olhos mais demorado que o de costume. Ela está a fim.
Eu ouvi quando a voz também pediu cinco reais de gasolina, mas não compreendi o motivo de ter sido mais rápido atendê-la. O frentista ainda estava em meus quatro reais e o dela já completo. De certo ele ainda estava rindo de mim. Da minha inabilidade com motos. Ela fala um “Obrigada” ao frentista mais meigo que ouvi. Dá uma última olhada em busca dos meus olhos seguida por um sorriso, e sai. Devagar.
Uma ânsia de ser grosso com o funcionário surgiu em mim. Mas, enfim, completaram os tantos reais. Paguei-o e acelerei a moto em direção ao caminho seguido pelo capacete rosa. Ao longe avistava sua seta à direita e depois à esquerda. Gravei todo um caminho até que ela sumiu. Por que será que queremos perseguir somente aqueles que fogem?
Embora pra casa. Nada de interessante naquela noite. Naquela meia-noite. Não sei, mas a palavra “embora”, às vezes, é tão inoportuna. “Embora” surgiu de uma junção aglutinada de três palavras com perda de fonema: “em+boa+hora”. Que boa hora era aquela em que eu queria conhecer aquela menina e ela fugiu de mim.
Numa rua do interior, caminho de volta para casa, resolvo passar pela contramão para poupar tempo e gasolina. Como se houvesse pouco tempo. Como se houvesse pouco combustível. Um farol. Pensei em polícia. Um farol. Descartei ser a polícia. Era uma moto. Era um capacete rosa.
-Oi, menino do posto.
-Oi, menina do capacete rosa.
-Qual o seu nome?
Respondi perguntando o seu.
-Anota meu telefone.
-Qual o seu nome? Você não disse.
-Você tem meu telefone. Me liga. Qualquer dia você fica sabendo.
Adoro pessoas ocultas, misteriosas. E desejei que este conto terminasse aqui mesmo. Qualquer outra palavra que ela dissesse, naquele instante, estragaria todo o clímax da narrativa. É sempre bom adiar o prazer.
Sem dizer nada, ela acelerou, para satisfazer meu desejo. De volta ao quarto-mundo tomei, em lembrança, o chá-vindo-diretamente-da-Inglaterra.
Sexo no ônibus
Sempre ouvimos algum amigo contar estórias de ônibus. Lembra-se daquele ônibus mais asqueroso no qual esteve. Aquele mastro horizontal seboso. Disputado. Os mais altos ganham. Os pigmeus invejam. Queriam também molestar aquele cilindro. Na tão e sempre ida e vinda, pra frente e pra trás. Aquele oscilatório incansável. Prazer nada gozado. Apenas o lubrificado, apenas.
Ainda bem que nesse conto não há molestamento. Não há gozo. E não há prazer sequer. Ela não era bonita. Aliás, ela era feia. Bem feia. Não que ela deixasse de ter virtudes. Não disse isso. Só falei que ela era feia. E isso ela sabia fazer. E sua mãe sempre a elogiou: “Minha filha faz tudo tão bem”.
Parecia estar sozinha. Para início de texto, vamos acreditar que ela estava sozinha. O ônibus parou na rodoviária. Todos se levantaram. Eu me levantei à sua frente. E, com respeito dentro da normalidade, mantemos certa distância do próximo, mesmo sendo irmão na fé. Não ficamos encostando, passando a mão. O homem é um ser tão malicioso por natureza. Subconscientemente evitamos qualquer pensamento preconceituoso. Ela não.
A fila demorou a andar. Todos esperavam calmos. Cada um em seu quadrado. Sem contatos. Porém ela estava atrás de mim. E estávamos num ônibus sujo, velho, molhado. O mastro. O sebo. Nada nada romântico. Olhei pra trás. Ela era feia. Olhei de novo. Continuou feia. Não procurei o seu bom porque nesse momento, nesse lugar, não procuramos outra coisa senão beleza. A mulher ser bonita é o requisito necessário e único para receber uma cantada num ônibus. Eu disse, num ônibus.
Só que ela estava tão necessitada. De ser tocada talvez. Ou quem sabe estava com pressa e queria passar na frente de toda uma fila que queria descer daquele veículo. Não sei o que passava na cabeça da mulher, mas que ela encostava-se a mim, encostava-se. E muito. Muito mesmo. Aquele calor insuportável. O suor. O sebo. O nojo não por ser feia, mas por encostar-se a mim. Aquele desespero. Aquela necessidade de sexo ou fuga. Tantos aquilos me irritaram.
-Dá pra parar de encostar em mim, por favor. Tá calor, estamos suados. E essa pregação... Chega pra trás só um pouco porque você ta praticamente me abraçando por trás. E eu não gosto disso.
-Menino, se enxerga – completou com alguns resmungos.
-Eu, hein. Tá estranho essa pegação em mim. Calma que todo mundo vai descer.
Até aqui, vocês podem pensar que eu me acho ou coisa parecida. Mas não é. Ela pegava muito. Passava muito a mão em minhas costas. E era a mão. Eu sentia, por completo, desde o mindinho até o polegar opositor. Eu não estava delirando. E ela era feia. Não consegui enxergar sua virtude, já disse. E não queria procurar. Eu queria um banho.
-O que ta acontecendo aí? – uma voz grossa de namorado se vira pra mim.
-Olha, não to querendo confusão, mas a mão da sua namorada, acredito, ta encostando muito em mim. E eu não to gostando disso. – Sei que, no momento, a reclamação foi gay. Mas, porra, ela era muito feia! Está bem, vou parar de dizer isso... Digamos que ela só não fazia o meu tipo.
-Você ta estranhando minha namorada, é isso?
-Uhm, ao pé da letra, sim. Ela é estranha...
-Tá chamando minha namorada de estranha?
-Eu te conheço ou você me conhece? – perguntei a ele.
-Não, não te conheço e nem você me conhece.
-Então sim. Estou chamando sua namorada e você de estranhos. Não os conheço. Essa é a definição: quando duas pessoas não se conhecem, são estranhas.
Risos no ônibus. Na fila da frente e na fila de trás. Um bando de estranhos, rindo.
Ela esperou a fila de sua frente descer. Realmente, não era pressa. Sua mão, de fato, procurava as costas de um namorado. O sexo que lhe dera as costas naquele ônibus.
Barbie
Ela deveria ter uns 5 anos. Eu, 23. E que pensamentos eu tive por aquela criança. Ela permaneceu em meu sonho acordado durante todo um dia. Lamentava a situação, desejando jamais vê-la novamente. Naquela loja de brinquedos, a pequena menina foi forçada a crescer. Sentiu aquilo tomar seu espaço interior no corredor mais-sem-vendedor. Somente ela, o pai e eu. Vista a cena, ausentei-me. Coloquei à tona meu sentimento de condolências para desculpar meu estado apático.
-Filha, você quer ir ao banheiro antes do início do filme?
Silêncio... somente lábios imóveis. Bocas caladas. Olhares ansiosos. Vontade de ter Barbie. Desejo de ser Barbie. Lembra que a ânsia apareceu pela primeira vez quando a viu, vestida de noiva. Com 3 anos, não sabia nada de casamento. Nada de núpcias. Nada do que escondia aquele véu-e-grinalda. Porém, a menina nascera com a maternidade expressa no sonho. Queria aquela Barbie grávida. A vontade era de estar grávida.
-Filha, você quer ir ao banheiro antes do início do filme?
Pensava no tamanho da barriga. Na vida ali dentro. Imaginou-se gorda e estabeleceu comparações com um fictício estado gravídico. Ainda com 5 anos. Pequena e grávida. Pequena e barriguda.
-Filha, você quer ir ao banheiro antes do início do filme?
-Pai, me dá essa Barbie, por favor!
Ela não queria saber de filme. A criança crescera no mais oculto dos corredores da loja de brinquedos. De repente, tudo ficou tão pequeno pra ela. Tudo tão infantil. Tudo tão ultrapassado. Maquinava uma maquiagem bonita para conseguir bom casamento. Boa barriga.
-Pai, me dá essa Barbie, por favor!
Não houve Barbie. Não houve favor.
-Filha, presta atenção na pergunta que estou lhe fazendo. Concentre-se e a responda. Você quer ir ao banheiro antes do início do filme?
A menina de 6 anos não foi ao banheiro. Naquela noite, ela se despediu dos desenhos de cinema e da vontade de ter Barbie. O que ainda lhe resta é sê-la.
Amor Grand Hotel
Ela saiu correndo da sala, aos prantos.
Todos achavam que rolava um clima entre a gente, inclusive eu e ela. Mas nunca quisemos assumir nada, talvez porque eu pensava noutra garota. Ela talvez em outro garoto. Nunca assumimos nada porque não havia o que assumir. Sem beijo. Apenas abraços apertados. Carinhos na biblioteca com direito a bronca do guarda. E dissemos tantas coisas. E fizemos tantas coisas. Exageramos a dose, subindo e descendo as ruas daquela cidade ainda estranha pra mim. Tudo aquilo era novo e temporário. Sabia que não permaneceria muito tempo ali. Seis meses, no máximo.
Uma amizade jamais vista. Eu não tinha amigos na sala. Conversava com todos, porém não me sentia no direito de contar minha vida a outrem. Algumas confidências escapavam com um ou outro. Íamos, todos os dias nos intervalos, tomar um creme de uva, o meu preferido. Às vezes eu e ela. Outras vezes ela, eu e mais alguns colegas.
Possuía um encanto específico. Um brilho único, mistura de mulher adulta com criança querendo descobrir o valor de um beijo. Meninas sempre me atiçaram. Mulheres sempre me excitaram. Já não sabia qual perfil preferia. Sempre exagerada nos sentimentos. Ou eu, sempre limitado. Não sei ao certo. Só sei que ela amava. E amava com tanta vontade que muitas vezes me sufocava. Não porque eu não queria, mas porque eu não podia. Achava pouco tempo para uma estória. Mas ao menos haveria uma estória.
Tantos dias juntos nos aproximaram. Muitos ciúmes e expectativas foram criados por nós. Professores diziam, colegas diziam. Mas nada. Nada acontecia. As brincadeiras iam ao limite do desejo. E o vice-verso também ocorria. De tal modo que não mais sabíamos quando era brincadeira, quando era desejo. Se havia limite. O que era o limite.
Certo dia, cansei de ser chamado de “pamonha” – apelido que me parecia, ao mesmo tempo, provocante e amoroso. Eu não era bobo. Nunca fui. Apenas não queria enxergar o óbvio. Eu não estava apenas gostando da situação. Gostava dela a ponto de qualquer trabalho em grupo desejá-la no meu, a todo custo. Quando não consegui, uma única vez, lamentei a perda da companhia e tive que engolir uma discussão sobre acreditar ou não em Deus, na aula de Teologia. Era a pausa da amizade. Mas ela teve seus motivos. Eu os dei. O escuro daquela sala do andar de cima da faculdade foi expectador de um beijo apaixonado. De um beijo salgado.
-Isso é pra você parar de me chamar de “pamonha”. Não é o que você sempre quis?
-Pamonha!
Ela disse a única palavra proibida. O beijo aconteceu. Somente o beijo, acompanhado pela lágrima que chorou seus olhos.
-Por que você está fazendo isso comigo?
Ela saiu correndo da sala, aos prantos.
A mendicância de papai
-“Ai, meu dedo! Abre a porta, rápido. Tá apertando” – disse-me mamãe.
Quando chegamos ao estacionamento da pecuária da cidade, fechei a porta com tamanha voracidade que não percebi um de seus dedos ali, amassado. Papai gritou comigo, como se eu fosse surdo ou estúpido. Um desses adjetivos eu não era. Sei disso.
E tantas bolas gigantes coloridas, balões, brinquedos de madeira e metal e colares com desenhos que brilhavam no escuro. Assim era a pecuária para um menino que fora criado na cidade. Tinha algumas vacas, alguns nelores, algumas galinhas e alguns porcos, porém nunca tive curiosidade para esses tipos de bichos. Tinha show sertanejo também, mas meu ódio pelo sertanejo remete ao chocalho e ao móbile do berço. Para disfarçar, andava uma ida e uma vinda dentro de cada galpão com esses ridículos e nojentos animais. Ouvia uma música para me certificar num futuro de que eu continuaria detestando tal estilo musical. E ia direto pro parquinho.
Andava uma vez. Duas. Três. O enjôo jamais me atingira nos tempos de criança. E, em pelo menos nisso, eu combinava com meus irmãos. Íamos todos na roda-tão-tão-gigante e em outros divertidos brinquedos. O que meu irmão mais gostava era o carrinho de batida. Nessa época, já recebia aulas de direção do meu avô, reforçando o meu atraso intelectual em relação a ele. Mas o dinheiro para os ingressos uma hora acaba.
Era uma cabana de palha improvisada. Pilares de madeira grossa sustentavam o local. Sempre uma dupla sertaneja animava o lugar com músicas cornas dançantes. Aquele monte de bêbados e suas cadeiras. O que me irritava é que sempre havia mais bêbados do que cadeiras, povoando o local e afirmando a perpetuação daquele tipo de diversão adulto. Papai e mamãe estavam em uma das arestas daquele quadrilátero tonto. Não entramos, demos a volta e paramos ao seu lado.
-Vamos aproveitar que o papai ta bêbado, que ele nos dá dinheiro. Sempre quando tá bêbado ele não nega. Ele fica mais bonzinho.
-Pai, me dá dinheiro pra andar nos brinquedos?
-Vocês já andaram – respondeu ríspido e grosso.
“Ele ainda não está tonto” preencheu os pensamentos dos três irmãos. Depois de algumas voltas pelos galpões para afirmar ainda mais nosso falso interesse rural de nascidos no interior, voltamos ao local dos adultos.
-Pai, me dá dinheiro pra andar nos brinquedos?
Ele não respondeu. Nunca respondeu. Tirou uma nota de cinqüenta reais do bolso estampando três sorrisos de uma só vez. Meu pai nunca havia feito feliz três pessoas ao mesmo tempo. E não fez.
Aquela noite um mendigo que estava na hora certa e no local certo comeu muito. Foi quando percebi que alegria e tristeza não são como água e óleo. Elas coexistem.
Eu juro
A Lan House de sempre recebeu uma visita hoje. Desta vez, não sei o motivo, peguei o número 07. Quantas lembranças... mas lembranças somente são ótimas se a gente não tem de lidar com o passado. E eu tive.
Resolvi criar o Blog, visto tantos textos ocupando o Desktop do meu note. De início, uma barreira: não sabia que exigiam uma conta do Google. E eu só tinha uma antiga do Orkut. Aproveitei para fazer um novo, visto que aquele username já me desconhecia. Depois de tantas perguntas, dentre as quais “Qual o nome do seu primeiro animal de estimação?” cheguei a um item incrível. Aceitar, com uma simples marcação da caixinha, os Termos do Contrato: “Declaro ser maior de 18 anos etc etc etc”. Eu era, então nem terminei de ler o exposto para não lembrar que já tenho 23 não vividos anos. E mais uma vez lidei com o passado. E doeu.
O mais engraçado da criação do Blog foi, ao aceitar os Termos do Orkut, a frase: “Levante-se, erga sua mão direita e jure concordar com os termos expostos”. Eu estava na Lan House. Era o computador número 07 de uns quinze no total. Ela se sentou nesse número ontem. Todos ocupados por quinze pessoas desconhecidas. Eu me desconheci naquele instante. Perdera meu username. Quis levantar e fazer o juramento. Provocaria risos e julgamentos.
Não levantei. Não jurei. Sem risos. Sem julgamentos. O Blog foi criado.
Mais uma medalha de bronze
Os três filhos ganharam as três bicicletas num único dia. O caçula deveria ter uns 7 anos de idade. Sabia que não sabia se equilibrar e, por isso, usava rodinhas na bicicleta verde. Mas aquela condição o intrigava tanto. Ver a supremacia de seu irmão ao andar já sem as rodinhas. Sem as mãos. Agora, enxergar a própria irmã, sexo frágil, andando sem rodinhas, foi o estopim para uma inveja sem dimensão. Ela não tinha processo fálico para competir com ele. Então ele se sentiu mais frágil que uma menina.
Recolheu o orgulho e foi andar com os irmãos na quadra do colégio de seu pai. Educação rígida. Não saia de casa. Não ia à casa de amigos. Não tinha tantos amigos, pra que visitá-los? Nisso seu pai tinha razão. Então corriam em círculos na quadra do colégio, apostando corridas. O 3º lugar era o máximo que chegara – daí o trauma com quantificações de posições recompensadas com medalhas de bronze. Escondera no mais profundo pensamento que só tinha dois concorrentes para não se sentir diminuto e manter, assim, um conceito do seu melhor eu.
A noite caiu. A tia foi ao colégio avisar que o pai já os esperava em casa para o banho e o jantar. O mais velho ia sem as mãos. A do meio pedalava sem rodinhas. E o caçula os invejava, olhando a mediocridade de sua condição em quatro rodas. Porém a rampa era íngreme e o mais velho não teve mãos para segurar a bicicleta que foi desgovernada em direção a três vasos caros de plantas baratas. A terra cobriu a rampa verde.
-O papai vai nos matar!
Sabia que meu irmão estava certo. Papai nos mataria. Mas eu só não entendia o motivo de eu me encaixar na surra. Foi quando presenciei o verdadeiro espírito de equipe pela primeira vez. Corríamos os três em círculos na quadra. Talvez eu nunca tenha chegado em 3º. Talvez era uma corrida em que o 1º sai e chega. Mãos se batem A 2º sai e chega. Mãos se batem. E depois eu, saio e chego. Então me conformei em apanhar.
Meu irmão foi o primeiro a ir chorando para o banho. E ninguém mais chorou naquela noite. No dia seguinte, bateu-me uma vontade de chamar meu pai para pedalar. Ele precisava entender o que é espírito de equipe.
Jack
Jack era um cachorrinho de rua que apareceu em meus 17 anos. Ainda filhote, branquinho, pêlo curto, olhos azuis. OLHOS AZUIS! Sempre o que eu quis em um filhote. Se pessoas com olhos azuis não me inspiram confiança, filhotes sim. Foi quando percebi que a minha desconfiança não era da cor dos olhos, mas das pessoas. O fato é que ele tinha olhos claros e eu ainda não sabia que todo bebê nasce assim, só mais tarde eles escurecem. É a temporalidade da pigmentação dos olhos. Lembro do profº. Ralt explicando.
O filhote foi crescendo num ambiente repleto de amor. O meu. Os irmãos o achavam “engraçadinho”, mas não o queriam. Era o sétimo cachorrinho tido concomitantemente. Eu prometera cuidar, alimentar, educar e limpar suas cacas. Então ele permaneceu crescendo em minha casa e em minha vida.
Na época eu fiz vestibular para Fisioterapia. Consegui a aprovação, mas estava no meio do 3º ano colegial. Não poderia cursar. Não queria cursar. Então segundo semestre daquele ano, chegava do colégio, abria o portão verde e Jack vinha correndo, já grandinho, com seus olhos ainda azuis. Era a confiança recém-chegada vindo ao meu encontro, todos os dias.
Mas um dia, Jack não correu. Meu longo olhar para o fim do corredor do portão verde não tinha fim. Assobiava e Jack não respondia. Foi quando vi uma das piores cenas da minha vida: Jack se arrastando com as duas patinhas da frente. As restantes, de trás, sendo arrastadas. E um sorriso estampado nos olhos de felicidade, a me ver. Ele sabia que eu poderia melhorar sua condição de enfermo. Ele sabia que eu havia passado para Fisioterapia. Quando a paralisia chegou, certamente pensou que eu o curaria.
Chorei, só me lembro disso. Ver alguém rastejando ao meu encontro é de partir o coração. E chorando contei aos meus pais. Eles se preocuparam, confio nisso. Digamos que Jack não era, apenas, prioridade deles. Era minha. Então decidi fazer sessões periódicas de fisioterapia em suas patas. Massageava-as três vezes ao dia. Tentava pô-lo de pé, segurando seu corpo, para andar. Compressas de água quente alternadas com de água fria. Às vezes andava, às vezes rastejava como se não houvesse patas traseiras.
Dias de tratamento seguiram. Uma semana após, o mesmo portão verde se abriu. O mesmo assobio. E veio Jack correndo ao meu encontro. Passou a cabeça em minhas pernas. Eu senti a analogia das minhas pernas com suas patas. Ele me agradecia por lhe devolver os movimentos. Por lhe devolver a vida.
No dia seguinte, Jack não correu em direção ao portão. Não correu em minha direção. Nunca mais confiei em olhos claros.
Rubor
Não é uma continuação do conto sobre a perda do celular da minha avó. Mas aconteceu simultaneamente. Porém como o assunto é outro, pede-se outro texto. Assim como a mudança de informação pede outro parágrafo. Merda, sempre tive dificuldade em separar parágrafos em uma redação. Chega de flashbacks.
Eu estava de frente à minha casa, voltando da minha avó. Antes de achar o Vivo em seu períneo, ela veio com o papo que sempre deixa o neto sem graça. Parece coisa de novela, avó moderna, mas não é. Essas coisas da Globo acontecem realmente.
Ela estabeleceu um monólogo sobre sexo. Contando experiências, ou falta delas, e perguntando as minhas. Contudo, foi um monólogo, pois o gato comera minha língua. Maldito gato, mais uma vez em minha vida! Bastava comer meu jantar noite passada. Lembrei das monitorias em Psicologia, dos relatórios que eu fazia, analisando uma idosa. Ela falava tão abertamente sobre sexo comigo e eu não sentia vergonha alguma. Não sei, mas senti o peso de quem inventou todos os relatórios daquela disciplina. Eu não tinha observada. Ela não falou sobre sexo. Ela não tirou minha vergonha. E tantas vezes perguntei o motivo de se estudar tudo aquilo.
Com tênis, camisa e moto vermelhos e apenas uma calça jeans azul, meias e cueca brancas, fugi daquela conversa. Queria meu quarto. Queria não sentir vergonha. Queria não precisar falar sobre sexo com minha avó. Estabeleci uma inversão: minha avó moderna, e eu ultrapassado. Chegando à minha casa, estacionando a moto na garagem, um amigo do ginásio comenta:
-Nossa, você está tão vermelho hoje!
Sinto que ele não falou do tênis, ou da camisa, ou da moto. Minha vergonha estava estampada no rosto. Tudo por causa do gato.
O misterioso caso do celular desaparecido
Sempre que posso vou à casa de minha avó. Conversar um pouco com pessoas mais velhas é sempre uma boa experiência. Ou você aprende algo sobre a vida ou você aprende a encontrar o prazer em contos simples do cotidiano.
Há pouco tempo ela aprendeu o manuseio de um celular. Tanto é que já tem dois, um de cada operadora. Esses dias, quando aprendeu a trocar o chip, achou essa função muito difícil. Prefere carregar o peso de dois aparelhos a carregar a culpa de sua pouca destreza. Ela disse que sempre anda com dois lenços, um em cada mama. Não que a falta de tamanho pede um aumento, mas é porque viu uma notícia na TV de que celular transfere radiação ao corpo, e o medo em tempos de câncer não é nada remoto. Os lenços isolam seu corpo dos aparelhos. Sim, ela coloca cada aparelho em cada mama. Um Vivo na direita e um Brasil próximo ao coração.
Dias atrás ela foi à casa de meu tio, seu filho, numa visita corriqueira. Ia a dificuldade de caminhar com o peso de dois aparelhos no corpo. Ela não é magra, mas esforça-se em manter o peso conseguido após vários regimes. Digamos que seu corpo tem curvas, mais curvas que os demais corpos. Sempre caminha em vestidos longos. Uma bermuda por baixo, pois calcinhas não são confortáveis. Não para aquele corpo.
Voltou para casa. Não estava mais leve, porém o celular não estava no lado direito, seu local habitual. Achou tê-lo perdido. E confiou nisso. Preferiu acreditar que o deixara na casa de seu filho. Então ligou para averiguar o paradeiro do celular. Não estava lá. Insistiu. Continuava não estando lá.
Teve a idéia de ligar para o número desaparecido usando o outro aparelho. Estava na sala. Estavam na sala. Mas, onde? A canção de James Blunt tocava e tocava e tocava, naquela sala. Próximo a ela. Mas onde? Onde? Deve estar no quarto, pensou. Era tão perto da sala seu aposento. Ligou mais uma vez. Tocou a mesma música até desligar. Pensou ser algo d’outro mundo. Como o celular poderia estar em dois lugares? Quando ela estava na sala, ele estava lá. Quando estava no quarto, o celular estava também. Estranho.
-Bem, vem almoçar – disse meu avô, seu marido – Depois você procura o celular.
Foi para a cozinha. Sentou. Almoçou. Regozijou.
-Acho que você comeu esse aparelho – ressaltou meu avô.
-Ai, bem, que isso? Nunca né! Quer ver, ele está ali no quarto. Escuta só o toque.
“Give me reason, but don’t give me choice. Cause I’ll just make the same mistake again”.
O olhar assustado de meu avô preenche os olhos de vergonha de minha avó. Risos, risos e risos. Incontida de vergonha, segue para o quarto. Retira o longo vestido. Não estava no sutiã. Retira a bermuda e o períneo estava Vivo.
-Bem!!! Eu falei que ele estava no quarto.
Cinema
Quarta-feira, fomos ao cinema. Pegamos o ônibus e fomos simplesmente. Não falo do calor insuportável ou da chuva torrencial que pegamos porque isso realmente não nos incomodou. O ingresso era mais barato nesse dia. Comemos antes da sessão. Discutimos horários e filmes a serem vistos. Como assim, filmes? Sim, ela sugeriu um meio para enganarmos o responsável por olhar os ingressos. Assim, assistiríamos a quantos filmes as horas nos permitissem, pagando apenas uma meia-entrada.
O escuro. O frio artificial do ar-condicionado. E o calor que um corpo conduz ao outro quando há diferença de temperaturas nos aproximou. Ela deitou a cabeça em meu ombro. Eu, minha cabeça sobre a dela. Cena romântica para romance, comédia, ação ou qualquer gênero. Os filmes eram de menos. Fomos, simplesmente. E não houve abraço. E não houve beijo. E não houve vontade.
Fomos embora. Pegamos o ônibus de volta já quase quinta-feira. Sem calor, sem chuva. Ela se foi. Eu me vou. Não sei quando a revejo. Não sei se haverá cinema com meia-entrada. Porém quarta-feira passada eu fui ao cinema. Sozinho. E realmente percebi que “o doce não é tão doce sem o sabor do amargo”.
Dividindo o egoísmo 2
Hoje eu fui a uma Lan House. É triste não ter internet em casa para poder fuçar o Orkut alheio. Ver novas fotos ou mesmo criar o blog. Já tenho tantos textos prontos. Mesmo assim fui. Talvez porque saberia que a encontraria lá.
Peguei o número 08. Olhei para um cantinho da sala, onde a parede encontra com a outra formando um ângulo reto. Ela sempre fica ali. Ontem ela estava ali. Hoje não.
Ainda assim, recolhi o sentimento amargo e pensei enquanto ser auto-limitado: basta-me para ser completo. Suas palavras fizeram história em mim. Vê-la falar sobre o livro que discute a fugacidade do subjetivismo foi maravilhoso. E ela jura que está tentando tornar-se uma pessoa melhor sem saber que sempre foi. Vive dizendo, e diz vivendo, que não sabe por que garotos inteligentes a procuram. Sempre se acha inferior, como se a inteligência fosse superioridade. Busca-se a pessoa e, certamente, você não precisa ler “Quem me roubou de mim”. Eis seu resgate.
Um abraço por trás. Ela colocou as mãos em meu peito deslizando por meus tórax e abdome. Sempre reajo quando alguém encosta na minha barriga. Aperto um ombro de encontro ao outro como se me fechasse para o mundo. Incomodam-me mãos carinhosas em busca de algo prazeroso deslizando sobre minha barriga acentuada. Porém hoje, senti-me quisto, querido, não deixando de achar-me gordo.
Era ela.
-Te liguei faz um tempinho.
-Eu estava trabalhando.
-Mentira. Passei na porta do seu serviço e já estava fechado.
E ela me contou uma história de tal aniversário de incerto funcionário. Abaixaram as portas, mas as luzes permaneceram acesas com todos trabalhadores-convidados lá dentro.
-Tô com fome!
-Você sempre está com fome.
-O que você me sugere comer? Tô com muita, muita fome.
-Comida.
Esqueci aquele senso de humor ridículo que ainda arrancava meus risos sinceros.
-Você?
-Engraçadinho. – Ela também se esquecera do meu senso-de-humor-mais-ridículo-ainda.
-Você está de moto? Hein?
-Respondi no MSN.
-Não ta abrindo.
-Problema seu. Respondi no MSN.
No fundo eu sabia que não estava funcionando. Aqueles computadores nunca funcionam, talvez por ser a Lan House mais barata da cidade. Respondi “não” sem perguntar o porquê.
-Idiota! – escreveu no MSN.
Ela leu a resposta. Agora posso falar a verdade.
-Por que você perguntou?
-Porque queria ir na minha mãe.
Um beicinho tão fofo se fez naquela boca, como criança pedindo algo vital.
-Estou de moto – falei em palavras.
-Idiota – respondeu-me em palavras. Podia ter me xingado no MSN, mas não.
-Vou embora. Tchau.
-Já to saindo também.
E lá fora ela me xingou de idiota mais uma vez ao ver que eu realmente estava de moto.
Que sentimento terrível me incomodou naquele momento. Algo fraterno mexeu comigo. A imagem de minha irmã e sua moto.
Talvez ela tenha jurado, jurado de pé junto, que estava disposta a repartir o egoísmo comigo.
Hoje, ela não se sentou no computador das paredes em 90 graus. Ela estava no número 07.
Beijo de despedida
Há uns tantos meses estava dando uns beijos de despedidas em uma guria. Até o momento fora um relacionamento de um mês e meio, aproximadamente. Seguiriam três meses de férias. Eu tão ao centro-oeste, e ela tão ao sul. Ela parou o carro em um lugar seguro e me negou beijos. Tudo porque paguei a conta de um lanche e não queria receber sua parte. Sou homem à moda antiga, gosto de pagar as contas para uma garota, quando eu a convido para sair. Mas ela me negava beijos. Somente se eu recebesse a quantia, voltaria a me beijar.
Eu tentava por tudo encostar-me naqueles lábios. Foi uma brincadeira bem legal, típica de dois apaixonados. Afinal, seriam três meses distantes um do outro. Era a despedida. E ela me negando beijo? Não fazia sentido, né?! Mas fazia sim, adiar a concretização de uma atitude faz o desejo crescer e o finalmente ser tão excitante.
E eu a forçava em todos os jeitos e ela continuava fazendo tipo. Num momento, eu estava bem junto a ela, olhando pelo vidro de seu carro a rua. Surge-me a imagem de uma senhora de uns 40 anos. Rosto bastante disforme de tantas lágrimas e sofrimentos. Falava algumas palavras, bem baixinho. O vidro fechado ensurdecia ainda mais sua voz. Mas não escondia as lágrimas.
Ela contou toda uma estória ou história que, na primeira vez, não ouvi nada. Abaixei o vidro e pedi para que recomeçasse com um simples “o que?”. Sabe quando a gente escuta uma história pela segunda vez tendo a impressão de que pediu para repetir só para certificar de que havia ouvido certo? Assim fiz. Mas não tinha ouvido uma palavra sequer realmente. Entretanto, sentia como se as lágrimas da mulher tivessem me dito tudo aquilo.
-“Moço, desculpa atrapalhar o namoro de vocês. Você num pode me ajudar com algumas moedas pra comprar leite pro meu filho não? Eu levei ele no médico e ele disse que meu filho é alérgico a lactose. Eu não tenho dinheiro pra comprar o leite porque é muito caro. Me dá uma ajuda. Você pode ir ali na farmácia comigo pra ver eu comprando. Eu não to mentindo, moço. Meu filho ta passando fome. Me ajuda, pelo amor de Deus!
Geralmente não ajudo quem termina uma frase com “pelo amor de Deus”. Não é porque sou católico e não gosto de ver o santo nome ser dito em vão, mas é porque me soa tão falso. Acho que é a válvula de escape do mentiroso, apelar para o sentimentalismo e para a religiosidade da pessoa. Porém, aquelas lágrimas me pareceram tão verdadeiras. Não havia sentido nada parecido antes, mas algo me disse, naquela noite, que aquela mulher fora enviada por Deus. Ela falava uma “lactose” sem ao menos saber o significado. Apenas repetia mecanicamente o que o médico lhe dissera.
Sem questionar, pedi emprestado à guria o dinheiro que lhe havia negado receber – como se fosse dela, como de fato era, pois jamais o aceitaria – e entreguei à mulher com sua verdade. Ela esperava moedas, e recebeu uma nota alta para quem pedira tão pouco.
-“Moço, não vai fazer falta pro senhor? Tem certeza? Muito obrigado, de coração. Que Deus esteja com vocês sempre”.
Já ajudei outras pessoas, mas nunca ouvi os agradecimentos. Talvez porque sabia que estava cumprindo meu papel de cristão, mas duvidava da verdade dos outros. Naquela noite, ouvi tão bem os agradecimentos. Foram sinceros. Não e nem nunca me arrependerei, mesmo se a mulher se embriagou com o dinheiro. Fiquei tão leve que me lembrei que o meu futuro é ajudar o próximo.
Senti-me tão humano a ponto de poder beijar a guria novamente.
A morte dos bebês curicacas
Resolvi escrever esta estória porque um amigo a acha muito legal e fica imaginando a cena todas as vezes que eu conto. Devia ter uns 5 ou 6 anos quando cometi o crime. A porta de metal da minha casa avistava um enorme lote com mato alto escondendo tantas pedras. Eu estava na idade em que escutava meu pai dizendo ao meu irmão mais velho que ele era o homem da casa, em sua ausência. Queria ser homem também, mais que meu irmão. Sei que meu processo fálico não era maior que o dele, por isso tentava superá-lo nos feitos.
Fiz uma aposta com minha irmã. Pegaria um ovinho de curicaca e mostraria a ela. Assim, ela poderia ser testemunha ao meu irmão, que não se encontrava no momento. Ela, por sua vez, prometera não contar nada à mamãe.
Desço as escadas, avisto o mato mais alto que eu. Vejo curicacas voando em minha direção. Dizia mamãe que elas põem as garras em nossa cabeça, e de tanto nos levantar, arrancam-nos os cabelos. Meu cabelo nunca foi bom, mas não queria perdê-lo. Senti, pela primeira vez que eu me lembre, a Reação de Cannon. Fugir ou lutar? Lutar! O gosto da fuga não construiria o riso sarcástico do meu irmão.
A agilidade dos meus anos de criança me proporcionou a conquista de dois ovinhos. Volto correndo para as escadas. Subo-as. Minha irmã me esperava ao topo, como prêmio dado a um gladiador. O meu sorriso de satisfação combinava com o dela de “que-vontade-de-contar-para-mamãe”. Mas ela contaria ao meu irmão. E eu podia ver a vontade intimista dele em gorar a minha conquista. Certamente ele torceria para eu ficar careca.
A alegria foi tão grande que não me contive em palavras e demonstrações dos ovinhos nas mãos. Minha mãe e seu sexto sentido vieram até mim e minha irmã.
-“O que você tem nas mãos”?
-“Nada, mamãe – escondendo o fim do meu irmão em minhas mãos e minhas mãos nas costas. Não sei, mas criança acha que se colocar um presente em uma caixa e a caixa em uma caixa maior, e assim por diante, o presente é mais legal. A surpresa é maior. Portanto, escondi os ovinhos duas vezes. Mamãe jamais adivinharia o que eu tinha ali.
-“Espero não ser ovos de curicacas. Elas vêm atrás de quem os pega a noite”.
Os olhos imensos de medo da minha irmã me lembraram olhos de choro de desenho japonês. Medo de me pegarem a noite. Os meus não posso descrever, mas não estavam tão diferentes, eu acho.
Homem que é homem arca com as conseqüências. E assim o fiz. Avisei à minha irmã de que devolveria os ovinhos. Assim, as curicacas não viriam atrás de mim. Caso não voltasse, ela saberia o motivo do meu desaparecimento repentino.
Desço as escadas. Sinto medo. Chego perto do ninho, sorrateiramente. As avezinhas permanecem intactas até eu terminar de pensar que estavam imóveis. Voam de repente em minha direção. Um rasante, dois rasantes. Medo. Medo. Medo. Choro... Desespero. Taco os ovinhos em direção ao ninho, rolando-os pelo chão. Mas o mato era tão alto que não percebi que havia uma “pedra no meio do caminho”. E os ovinhos se partiram.
Reação de Cannon novamente. Mas desta vez eu corri. E passei noites correndo acordado, com medo de as aves virem me pegar. Acho que até hoje estão em luto.
Classificados
“Homem, 23 anos, solteiro, estudante, procura mulher que goste de ser acordada de madrugada. Sem mais exigências”.
Só isso. Mais nada. Não peço amor, não peço carinho, tampouco verdade. Só quero poder pegar meu telefone e ligar para alguém às 3 horas da manhã e dizer que eu gosto muito e estou sentindo sua falta.
Dias atrás fiz isso com duas pessoas. Não sou bígamo ou algo do gênero. Tentarei ser claro e conciso. Estava pensando nas duas, liguei para as duas. E não vem ao caso para quem liguei primeiro. Pensava nas duas com a mesma intensidade.
-Oi... boa noite! Que você tá fazendo? – pergunto para ser cordial, temendo a resposta que cabe a tal pergunta.
-Estou dormindo.
Bastou para eu sentir que atrapalhei. Poxa, eu só queria dizer que me lembrei de você. Que sinto sua falta. Mas não disso isso nem aquilo. Senti em sua resposta o gosto amargo de acordar alguém de mau humor, que não liga para o que desperta no outro. Ela não sabe que eu gosto dela. Ou se sabe, não se importa com o gosto. Prefere acreditar que estou a fim de incomodar porque ela estuda na manhã seguinte e estagia a tarde toda, e eu ainda estou de férias.
-Oi... boa noite! Que você tá fazendo? – pergunto para ser cordial, temendo a mesma resposta que cabe a tal pergunta.
-Tu... tu... tu...
Ou a ligação caiu ou ela desligou. Como sempre, prefiro acreditar na boa índole das pessoas. A ligação caiu, foi isso.
Dois dias depois, uma mensagem no meu celular: “Seu maluco, akele dia eu acordei e quase n dormi +. Nem entendia se tava sonhando ou n. Fikei c sono o dia inteiro... Tava sem credito. Bjim, boa noite.
Continuo acreditando na boa índole das pessoas.
Dividindo o egoísmo 1
Esta semana foi muito difícil pra mim. Recebi a notícia de que minhas férias estavam apenas no início do segundo tempo, praticamente. Remanejamento de funcionários da faculdade, mais um mês de férias, e conversas de futura greve me deixaram bastante zangado. O que inventar para fazer em casa? Passar caderno a limpo, estudar Microbiologia, ouvir as aulas de Embriologia que faltei de corpo presente com o pensamento no Pancho. Saco, saco, saco! E só me vinham assuntos estudantis em mente. Faltas de originalidade. Dinheiro limitado porque o salário do meu pai atrasara... Enfim, sem muitas alternativas.
Em outras semanas eu tinha moto. Tudo bem, não era minha, mas meu irmão a deixava comigo. Assim não precisava agüentar as reclamações ao pedir emprestada a da minha irmã. No entanto, justamente na semana em que recebi a notícia de que iria voltar à minha cidade só-Deus-sabe-quando, meu irmão não deixou a moto comigo. Não sei por que, não me interessa esse saber. Só fiquei imaginando se eu a deixei sem gasolina, ou se estraguei alguma peça. Mas não, não fiz nada de errado. Apesar de qualquer ação ser motivo para reclamações.
E os dias se seguiram. Eu, a pé, de um lado para outro. Merda! Justamente nessa semana, a dentista marca dolorosas sessões de canal todos os dias. Eu disse TODOS OS DIAS! E não é perto da minha casa seu consultório. É longe, muito longe para quem está, há 23 anos, fora de forma. Saio suado de casa, chego pregado na dentista. E ela é tão linda... Como eu queria estar cheiroso. Mas é casada.
E tantas dores no dente, que se irradiavam para o ouvido mesmo após anestesia local. Eu fingia que não sabia o porquê da irradiação. Fingia não saber anatomia pra ter um álibi para reclamações. Às vezes é tão bom as pessoas ficarem com dó da gente. Se elas têm moto, podem emprestar para “aliviar” o sofrimento da vida. Mas minha irmã não. Ela tem moto, mas lhe falta sensibilidade para perceber o sofrimento do próximo. Ou lhe sobra a ponto de perceber o fingimento. Dúvida!
Ela tem filho na pior idade. Sabe aqueles anos em que já sabe falar de tudo sem saber o significado do mesmo tudo? Pois é. E fala palavrões sem saber que são palavrões. Alguém o acha bonitinho falando tantas palavras. Acreditam ser ingênuo. Pode ser mesmo, desde que ela tivesse me emprestado a moto.
Para ir ao serviço, vai de moto. Para levar o filho à escola que é, de fato, longe, leva-o de moto. Para ir a casa distante do namorado, vai de moto. Ou seja, ela tem tudo na vida. Já tem um filho, tem namorado, tem emprego, tem salário, tem dívidas e tem uma moto, que ela mesma pagou, com dinheiro dela, suado. Mas não sei, algo me diz que ela deveria ter me emprestado a moto. Eu suo para ir à dentista e nem por isso deixo de ir a pé.
Nunca vi isto. Ela comprou a moto, pagou a moto, tem filho que precisa da moto. Tem serviço que precisa da moto. É muito individualismo e materialismo para uma só pessoa. E eu juro, juro de pé junto, que estava disposto a repartir esse egoísmo com ela.
Vou pedir à dentista uma anestesia geral, assim não sentirei as pernas ao caminhar tanto.
Miau
Uma vez eu tive um gato. Ele se chamava Miau. Não que isso faz tanto tempo para o nome do meu gato refletir a minha ingenuidade e falta de criatividade de criança. Eu não era mais criança. Tudo tem uma explicação, exceto perguntas filosóficas como “Quem sou eu?”, “O que é o mundo?” ou “Por que não gosto de gatos?”.
Não fiquei traumatizado com a morte do gato que comeu minha janta, porque ele ainda vive. Não achei saco ou coisa parecida naquele texto. Será esse, então, o meu trauma? Não, acho que não. Eu o amava tanto. Não o fdp que roubou o meu bife e degustou do meu purê de batatas, mas o Miau. Ele era cinza como todo gato comum. Não era persa, não era bonito. Era comum. Nasceu na rua, morou em minha casa, de certo morreu na rua. O fato de ele morar em minha casa contradizer o período anterior não passa de “se alimentou em minha casa”. Porque gato é traiçoeiro apesar de fofinho. Só se aproxima quando acha que você pode alimentá-lo com um prato de janta. Maldito!
Mas Miau era assim, só que na época eu não havia pensado em tantas teorias, e a filosofia não me abrira a mente para perguntas tão-sem-respostas. O que mais me chamava atenção nele, sobretudo por ser comum, era porque todas as noites eu o levava ao meu quarto e ele olhava tudo como se fosse a primeira vez. Cada canto, cada armário, cada detalhe da colcha da cama.
Dizem que as crianças são eternas filósofas, pois são capazes de se admirar com qualquer coisa, ainda que repetida. Gatos também. É uma pena que Miau apareceu quando eu tinha 18 anos, quando deixei de ser filósofo para sentir raiva de gatos.
Trauma
Vinte e cinco reais é muito caro para uma Jornada. Estudante de Medicina de um estado tão ao sul da terra natal, tantos gastos. Com comida, principalmente. Confesso: bebida vem em segundo plano. Livros fotocopiados ocupam uma pequeníssima parcela em meu gráfico de pizzas mental. Costumo justificar a diminuta parcela por ser ilegal a pirataria. Então é uma válvula de escape para meu sentimento de culpa.
Ainda assim fiz a inscrição, prometendo descontar a quantia em comida para emagrecer, ou em bebida para ficar sóbrio. Depois de um pequeno simulado de 30 questões sobre o abordado pela Liga do Trauma da faculdade, a simulação. Um estrondo. A sirene. Murmúrios de que algo realmente acontecera no pátio da faculdade. Era só a simulação, confirmei para mim mesmo, não esperando nada demais.
Desci ao lado dela para ver o ocorrido. Tanta gente me faz lembrar que tenho Peoplefobia. Recupero-me e sigo escada abaixo. Corpos espalhados ao chão. Omentos, rádios, ulnas, estômagos, plexos braquiais e outros termos anatômicos foram tão visíveis naquele momento. Uma interjeição de admiração pela descoberta oculta todas as aulas de anatomia dos períodos anteriores. Gente gritando. Flashes fotográficos. Alguns mais tímidos arriscavam fotos em celulares VGA.
No momento em que o Corpo de Bombeiros retalhou um carro ao meio para retirar supostas vítimas lá de dentro, alguém ao meu lado diz:
-“Muito massa isso tudo. Quero fazer parte da Liga. Vou fazer de tudo para entrar”.
Vi tanta admiração pela organização naquelas palavras. Mais que isso, pela Medicina. E eu que não sentira nada. Fui apenas o narrador onisciente dos sentimentos alheios. Desejei ser mero observador.
Não sei ainda o quê, mas algo não me despertou. Tomara que eu não tenha afinidade pelo Trauma, porque se eu tiver que deixar a Medicina...
Mas ganhei um ingresso para a festa que não iria, na noite seguinte. Não havia escada abaixo para me recuperar da Peoplefobia.
E os 25 reais não foram descontados em comida, tampouco bebida.
Sexo por acidente
Era noite. Saí com algumas amigas à procura de diversão. Risos e conversas banais. Naquela noite, nada de sexo como o início do texto erroneamente o alerta. Paramos o carro em frente à casa de uma amiga. Um som para alegrar o ambiente deveria despertar meus sentidos mais evangelicamente puros. Mas sou católico-às-vezes-praticante, lembro. E a tentativa de dar uma aura santa ao carro não passou de tentativa.
Falávamos de um acidente que ocorrera na cidade. Interior é assim, acontece um dia e é motivo para especulações durante o mês que segue. Não fazia mês, mas talvez um ou dois dias. Então me vi no direito de puxar tal assunto sem parecer aquelas fofoqueiras-empregadas-de-janelas-de-becos. Um motorista qualquer, desses de 65 anos, que dirigia uma Kombi da prefeitura local e alguns alunos-crianças de 6 a 10 anos são as personagens dessa estória. A Kombi, vale ressaltar, também é uma personagem. Aliás, a principal.
Era tarde. Mais crianças que cintos de segurança. Uma curva. O motorista idoso. A velocidade. Os braços fracos tremem. A Kombi desgovernada. Um acidente. O veículo capotou e por metros se arrastou. E, como se fosse ironia, o cinto de segurança que não segurava um dos alunos de 6 anos deixou-o escapar pela tangente que coincidia com o vidro entreaberto da Kombi. Espaço diminuto, mas aluno diminuto. Como se diz os mais velhos, “cada mão para sua luva”.
Não bastasse a experiência de o aluno voar, ação que somente se concretizava em seus sonhos infantis, eu disse anteriormente que a Kombi se arrastou. Em direção ao menino! E ali permaneceu, sobre ele.
E o aluno-criança que não se acostumara com o ritmo exagerado de ensino da escola havia reclamado para a mãe: “-Mamãe, a escola tá tão pesada, que mal tô conseguindo respirar”.
A música acabou. Pensei em sexo, motivado pelo humor negro.
Gato
- Um dia eu te mato!
Como eu queria que entendesse o que eu estava falando. Tanta ira ia e vinha no meu sentimento. Pensava em prendê-lo num saco ou coisa parecida e jogá-lo longe de tudo e de todos para falecer sozinho, abandonado. Quisera ter um saco no momento. Quisera também ter coisa parecida.
Por que o meu prato de comida? Havia três, um ao lado do outro. Acho que com eles também funciona aquele pensamento longínquo na memória, tão típico aos humanos, de se escolher o que está no meio. Um mágico sempre esconde a moeda no copo do meio. Pode embaralhar os copos que a moeda persistirá no meio. Caso não esteja ali, saiba que a vontade do mágico era de mantê-la naquele lugar. Porém precisa enganar o público, então a coloca à direita ou à esquerda. Entretanto o animal escolheu o prato do meio, sem saber o que é copo. Sem saber o que é prato. Sem se dar conta de que era mágico.
Meia hora eternizada em tantos xingamentos naquele prato. O bife, o ovo frito, a salada temperada, o purê de batatas, o arroz e o feijão. Completei com farinha já que tinha pouca comida para tanta fome. Dizia a mãe de uma “amiga” minha: -“Completa com farinha que enche... e como”! E come? Não! Aquilo não era um verbo conjugado em primeira pessoa. Porque naquela noite houve comida, mas não houve o “Eu como (!)”.
O gato comeu minha janta.
Medalhas de bronze
Não tendo como variar a rotina das férias prolongadas, fui praquele ginásio hoje novamente. As horas me deixaram tão fatigado... E busca bola, e pega bola, e cai, e levanta. E busca mais bola. E cai mais uma vez. Pausa. O treino masculino acabou.
Hora da emoção. Com quatro profundas pedaladas consigo ligar a moto. E recordo que não tenho carteira, tampouco experiência com motos. Pequeno ódio pelo mais velho da família que não me ensinou a dirigir. Lembra-se da personagem de “sanidade que construiu o insano” em “Espelho da vida”? O próprio. Quer saber? Vamos arriscar! Sem capacete, sem juízo, sem destreza o deixo em casa. Volto para o ginásio.
Treino feminino. Fico na expectativa de tirar algum proveito. Treinar defesa, ou passe, ou saque em uma rede tão baixa que mais parece jogar tênis. Fico mais por pedidos de um amigo, e também para ver mulheres jogando. Isso sempre me excita, com educação moralista, é claro. Todas sentadas, eu de pé, conversando sobre medalhas. Quantidade, pois qualidade não se discute para ocultar a vergonha de terceiros lugares.
- Vinte oito medalhas de vôlei e dois troféus.
Semblantes assombradamente indagadores...
-Ah, só? Vinte oito de vôlei. E de que são as outras?
Uhm... Pensei alto. Deixei subentendido de fato.
-Umas aí.
-Aposto que é de melhor aluno, melhor isso, melhor aquilo...
Risos sem graça. Como se o pudessem ser, ou mesmo serem engraçados. Deveria ser apenas risos, sem adjetivos. Risos, nada mais.
-Acertou.
A sinapse das recordações veio tão rápida que sequer abriu os canais rápidos de sódio. Logo se foi a memória dos dias de premiação em que eu aguardava, ansiosamente, receber a medalha de melhor aluno do colégio.
Retorno a um momento epifânico do texto.
-Aposto que é de melhor aluno, caderno mais organizado, letra mais bonita, e aluno mais bonito do colégio.
Pelo melhor aluno, recebi a medalha. Pelo caderno mais organizado, esperaria. Pela letra mais bonita, concorreria. Agora, aluno mais bonito do colégio... Surpreso com tal categoria!
E eu que sempre me vi com um perfil de sujeito de bulling.
Risos. Apenas risos, sem adjetivos.
Assinar:
Postagens (Atom)